Contra-almirante médico, especializado em cirurgia vascular e endovascular, ele esteve à frente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária por cinco sólidos anos – apesar da carência de pessoal, da pandemia e do negacionismo antivacinas que ele enfrentou no período. Ao deixar agora a presidência da entidade, ele valoriza o papel fiscalizatório da agência nesta entrevista exclusiva à Abcfarma:
“Se a Anvisa não estiver forte e atuante, nossa economia naufraga”.
Segundo um ditado popular que o senhor avaliza, toda coisa boa tem que ter um fim. Agora é verdade, na prática?
Sim, é verdade. Vivi diversas passagens que foram muito boas, e terminaram. É uma certeza da vida. Assim, eu vivo o hoje, o agora. Por melhor que seja, um dia acaba.
Sensação de dever cumprido? Alívio?
Dever cumprido? Não cabe a mim dizer isso. Quem pode julgar é o cidadão, a cidadã, a quem eu procurei servir da melhor maneira. Alívio? De jeito nenhum. Já tenho saudades do meu recém-terminado trabalho, das pessoas, dos desafios. Alívio se tem de algo ruim que passou. A Anvisa foi um período muito gratificante.
Como está se sentindo depois de encerrar esse ciclo de cinco anos altamente eficientes à frente da Anvisa? Quais são as marcas que o senhor está deixando?
Valorizei o trabalhador, a coletividade dos servidores, o coração da casa. Valorizei o Colegiado de Diretores, a gestão. E, isso também foi uma meta alcançada, reforcei a inserção internacional da Anvisa. Outra coisa: dei ênfase à comunicação social, sobretudo ao ato de falar à população, combater as fake news. Isso é muito importante.
Medicina e Marinha: a fusão dessas duas carreiras preparou-o para comandar uma agência que regula e fiscaliza a saúde dos brasileiros?
A carreira naval na Marinha por certo me deu experiência de liderar em condições adversas. Como oficial-médico, a “guerra” é sempre real. Lidamos com dor e doença, vidas e perdas de vidas. Ajudou, sim. Mas no meio civil não há “comando”. Comando é próprio da atividade militar. Na Anvisa tive de liderar, inspirar, estimular, apoiar, como um igual. Um par. Como Diretor-presidente, fui um coordenador de pares, de iguais. É diferente.
A pandemia foi, certamente, o período mais tenso de sua gestão, sobretudo pelo embate com negacionistas do governo, que chegaram a dizer que o sr. não era contra-almirante, mas almirante do contra… Que balanço o sr. faz desse período? As vacinas anti-Covid hoje estão consagradas?
O negacionismo científico foi um mal que se abateu sobre o mundo, inclusive no Brasil. Lançou as sementes da dúvida na mente das pessoas. Isso é um mal sem precedentes. Não vai parar por aí, infelizmente. Vacinas consagradas? Não. Nada mais está “consagrado”. Prova disso o fato de que a aceitação vacinal não voltou ao patamar pré-Covid no Brasil. Muito se exigirá de quem enfrentar pandemias daqui pra frente.
A carência de servidores foi um drama crônico da Anvisa em todos esses anos. Até que ponto isso afetou sua gestão?
A minha gestão, nesse aspecto, foi marcada pela luta por mais servidores. É público. Basta procurar minhas falas nesse sentido. Portanto, fiz o que era meu dever. Lutei de todas as formas. Mas, como fui gestor antes, durante e depois da pandemia, naqueles momentos difíceis tínhamos que priorizar tudo para combater a Covid. Assim o fizemos. Minha gestão não foi impactada. Difícil será agora, para um período pós-pandemia, voltar à rotina sem efetivo mínimo necessário. Espero que agora venham mais concursos, mais gente. Caso contrário, haverá prejuízos.
Estima-se que os setores que a Anvisa fiscaliza, como o mercado farmacêutico, respondam por 30% do nosso PIB. O que isso, na prática, significa para a agência?
Há mais de dez anos, o IBGE mensurou em 22,8% do PIB o mercado regulado pela Anvisa. Hoje, estima-se em 30% essa mesma fatia de mercado. É caso único no mundo. Se a Anvisa não estiver forte e atuante, nossa economia naufraga. Simples assim.
Por falar em farmácia, como o sr. avalia nossa legislação relativa à precificação controlada dos medicamentos e o papel secundário da Anvisa nesse segmento? Por envolver a saúde dos brasileiros, a fiscalização deve ser rigorosa?
Precificação de medicamentos é atribuição da CMED(Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), integrada por cinco ministérios. A Anvisa exerce o secretariado dessa comissão, a SCMED. Ninguém se lembra de que há cinco ministérios envolvidos. Quanto à fiscalização, se não for rigorosa, não é fiscalização, é acordo.
Temos hoje 100 mil farmácias no Brasil. Qual é sua impressão sobre o papel desse setor na saúde do país?
Essencial que existam farmácias perto de onde vivem e residem as pessoas. Um país continental como o Brasil precisa ter uma ampla e capilarizada rede de farmácias. Acessibilidade à saúde perpassa por uma profusa rede de farmácias, também.
Entre os cerca de 15 mil medicamentos disponíveis hoje em nossas farmácias, nenhum foi tão polêmico, nos últimos anos, como o Ozempic. Que avaliação o sr. faz sobre esse torpedo anti-obesidade?
A Anvisa regula o uso de bula. O uso fora de bula, do inglês “off lable”, é da prática médica, portanto dos órgãos de classe, CFM e conselhos regionais. Reforço que o medicamento em tela exige receita médica. Ou seja, a consulta médica é fundamental para obter o efeito desejado e minimizar riscos.
O sr. certamente teve vários encontros com seu anunciado sucessor, Leandro Safatle, antes de deixar o cargo.
Que recomendações foram transmitidas a ele?
Tive alguns poucos contatos com o Dr. Leandro, todos antes da indicação dele. Minha impressão dele é a melhor possível. Possui sólida formação, é muito cordato e todos com quem conversei e converso passam as melhores referências dele. Tenho a impressão de ser um homem de bem. Desejo-lhe muito boa sorte e estarei sempre pronto a cooperar com ele, se assim desejar. Fiquei em paz com a indicação, pois ele, com certeza, tem todos os predicados para se sair muito bem na sabatina do Senado Federal.
Prospectando esses cinco anos seus na presidência da Anvisa, quais foram, a seu ver, os principais avanços da vigilância sanitária brasileira?
O principal avanço, fruto da atuação na pandemia, foi a Anvisa ter se tornado conhecida e respeitada pelos cidadãos. Isso não tem preço. Outro fato foi a ampliação de nossa participação no cenário internacional, nos esforços da OPAS e da OMS, entre outros organismos. Modernizamos e simplificamos o acesso à Anvisa pelo setor regulado, nos aproximando da área produtiva. Não avançamos mais por falta de pessoal.
E as vigilâncias estaduais e municipais? Como o sr. as avalia hoje?
As vigilâncias estaduais e municipais são essenciais. É o pacto tripartite. A Anvisa não faz nada sozinha. O CONASS e o CONASEMS são nossos parceiros nessa luta. E o Brasil tem gente de muito valor nessas vigilâncias. Se o governo federal reconhecer esse fato incontestável e nos der gente, orçamento e apoio, sabemos fazer o nosso trabalho e não deixaremos o nosso povo, nosso legítimo patrão, desassistido.
Ao deixar a Anvisa, e depois da quarentena de seis meses, qual é o futuro do médico-almirante Antonio Barra Torres?
O meu futuro é o trabalho. Gosto e preciso. Acordo e me levanto, querendo ir para o trabalho, há mais de 37 anos, 37 anos ininterruptos de serviço público. Deus é quem decidirá onde e como, como sempre foi. A quarentena é uma justa determinação legal. Assim, vou cumpri-la. Espero ainda ter saúde e força para contribuir para o Brasil e o mundo, enquanto Ele assim permitir. É isso que me move.
Admite que será o executivo mais disputado do mercado de saúde no país?
Olha, não sei se sou “o mais”. Me contento em ser um. Um que não pensa em parar. Não hoje, não agora. Mas, se você tiver acertado na sua avaliação, que venha a próxima missão. Estou pronto.
Por Celso Arnaldo Araujo – Jornalista